terça-feira, 4 de março de 2008

POLÍCIA DE CICLO COMPLETO

Constata-se que é pouco difundido o significado do chamado “Ciclo Completo de Polícia”, o qual segundo Rondon Filho (2003) é a execução das funções judiciário-investigativa e ostensivo-preventiva pela mesma instituição policial. Sendo que para isso tornar-se realidade no Brasil, conforme leciona Silva (2003) passa pela inevitável reestruturação do subsistema policial mediante emenda ao texto Constitucional Federal de 1988, precisamente o contido no Art. 144, artigos correlatos e demais diplomas legais inerentes ao assunto.
A partir destas razões e debates em torno desse assunto, é que entendemos plausível a temática para discussão através do presente artigo. Além disso, devemos lembrar que as relações sociais evoluem diariamente e as instituições policiais, para acompanhar essa evolução em seus diversos aspectos, devem aprimorar-se para evoluir junto, racionalizando meios e equacionando recursos, desde financeiros, tecnológicos, materiais e humanos, com objetivo de melhorar a prestação de serviço de segurança pública a sociedade, de forma eficiente e eficaz.

RESUMO DA ESTRUTURA ATUAL DAS POLÍCIAS DOS ENTES FEDERADOS

Silva (op. cit., p. 51), afirma que “o crime é um fenômeno normal de qualquer sociedade”, fenômeno esse tido como um dos responsáveis pela necessidade de regulação da vida em sociedade, para se manter um convívio social harmônico. E para esta situação surgiu a polícia, que no Brasil teve notória ingerência das forças armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica), seja na composição ou na administração desse órgão estatal encarregado da “segurança interna”, como preferiam chamar em épocas ditatoriais.
Esse “amadorismo” na constituição da polícia brasileira, oriundo do estigma da segurança nacional essencialmente nos períodos de governos ditatoriais no Brasil, provocou verdadeiras “anomalias” no sistema de segurança pública nacional, dentre os quais, e mais discutidos na atualidade é a existência de duas polícias no âmbito estadual: Polícia Militar (também chamada de polícia administrativa ou ostensiva) responsável pela preservação da ordem pública através do policiamento ostensivo e preventivo; e Polícia Civil (conhecida também como polícia judiciária) responsável pela investigação (encontrar autoria e materialidade) dos crimes que a outra polícia (junto com a comunidade, segundo a visão de polícia comunitária) não “conseguiu” prevenir, tudo para que o Ministério Público inicie a ação penal. Assim comentou Hélio Bicudo (2000, p. 91) “Trata-se de um modelo esgotado e que fora montado, nos anos da ditadura militar, para a segurança do Estado, na linha da ideologia da segurança nacional (...)”.
Aspecto esse, materializado na Constituição Federal de 1988, na qual o legislador teve a oportunidade de reformular totalmente os órgãos de segurança pública brasileiro, até então fatigado, ineficiente e o que é pior, contaminado pelas mazelas típicas de regimes ditatoriais. Entretanto, apesar dos avanços constitucionais nos mais diversos segmentos da vida pública e social do país, muitos estudiosos e analistas brasileiros sobre segurança pública, dentre eles: o Antropólogo e Ex-Secretário Nacional de Segurança Pública Luis Eduardo Soares; o Coronel aposentado da PM de São Paulo José Vicente da Silva Filho; o Advogado, Jornalista e Ex-Deputado Federal Hélio Bicudo, criticam a forma como ficou delineada a área de segurança pública pelo constituinte de 1988, ainda mais após essa experiência de quase 20 anos de vigência desse modelo. Período mais que suficiente para analisarmos e compreendermos a inoperância das polícias estadual e distrital, no sentido de não contribuírem significativamente para redução ou pelo menos controle dos índices de criminalidade.
O Art. 144, §§ 4º e 5º do atual texto constitucional discrimina de forma sucinta a atribuição dessas duas polícias estadual/distrital. Desta feita, verifica-se uma padronização do serviço policial em todo território nacional, isso sem respeitar as peculiaridades de cada unidade da federação, que começam desde a extensão territorial, quantitativo populacional e culturas diferentes. Mesmo assim, temos obrigatoriedade em manter duas polícias de modo “padrão” no âmbito das Unidades Federativas, subordinadas aos Governadores. No entanto, são constituídas com aspectos diferentes, a começar pelas atividades distintas, estrutura hierárquica e disciplinar também diferente, sem contar a remuneração, que na maioria das polícias brasileiras há diferenças gritantes de uma para outra em termos de valores, provocando atrito entre os membros das duas corporações. Porém, ambas têm objetivos iguais: o controle da criminalidade, que sem a soma (unificação) de esforços, torna-se praticamente “impossível”.
Diante dessa vigente composição, observa-se um complicador a mais para essas instituições de segurança pública desenvolver, implantar e obter sucesso em políticas de segurança pública que tenha como objetivo o controle da criminalidade, principalmente quando esse objetivo está centrado na prevenção, o que sem dúvidas demanda esforços concentrados e mais que integrados. Isso sem acrescentar, que essas duas polícias, da forma como estão delineadas, não realizam o necessário ciclo completo de polícia, o que significa mais um argumento para realizar a reestruturação dos órgãos responsáveis pela segurança pública brasileira.

DISCUSSÕES PARA REESTRUTURAÇÃO DOS ÓRGÃOS DE SEGURANÇA PÚBLICA BRASILEIRO

Apesar de gestores públicos tomarem medidas que considerem de peso e capazes de evitar o recrudescimento da criminalidade, seja através da aquisição de armamentos e equipamentos, viaturas, ou aumento do efetivo policial nas ruas, poderão estar errando querendo acertar (SILVA, op. cit.). Assim sendo, é oportuno destacar a seguinte observação deste mesmo autor:
“(...) o fato de o Brasil ter uma organização político-administrativa sui generis. Parece óbvio, mas a muitos passa despercebido o dado de que o Brasil não é um país unitário. Este dado é significativo porque, com a queda da monarquia, cria-se artificialmente uma República Federativa num país de tradição centralizadora, onde se espera que tudo venha de cima para baixo. Tudo depende do poder central; hoje, do Governo Federal”. (op. cit., 2003, p. 53).

Deste texto, extraem-se indícios dos motivos pelos quais algumas ações no âmbito da segurança pública estadual/distrital não evoluem como deveriam e outras ficam estagnadas em virtude da vigente composição político-administrativa do Estado brasileiro. Daí entende-se o efeito da frase acima, em que gestores públicos poderão estar “errando querendo acertar”.
Após essa análise, vamos nos ater a algumas argumentações de Soares (2003), que relata sugestões aparentemente utópicas, mas, podem servir de parâmetro aos gestores públicos no instante de definirem prioridades a serem adotadas:
“1) (...) reforma do Estado, para que as ações governamentais possam ser integradas e racionalmente orientadas para a interceptação tópica das dinâmicas geradoras da criminalidade violenta, sem prejuízo das indispensáveis mas demoradas intervenções estruturais; (...) 2) reforma das polícias, via alteração constitucional e mudanças compatíveis com os marcos legais atualmente em vigência; 3) quanto a estas últimas, destaque-se a urgência da reforma gerencial e da racionalização do sistema, em benefício da implantação de políticas capazes de aprimorar a eficiência policial reduzindo-se a impunidade e que sejam compatíveis com os valores democráticos de respeito aos direitos humanos e civis”.

Esses itens estão mais bem detalhados no Plano de Segurança Pública para o Brasil do Instituto Cidadania, coordenado por Antônio Carlos Biscaia – atual Secretário Nacional de Segurança Pública.
A fim de subsidiar as sugestões acima, vamos conferir razões apontadas por Silva Filho (2001), ao se opor a integração sem unificação:
“1) não é verdadeira a idéia de que prevenção do crime - largamente atribuída às Polícias Militares - e a investigação das Polícias Civis sejam atividades tão diferenciadas e distanciadas que demandem organizações completamente diferentes em estrutura, treinamento, valores, áreas de operação, disciplina, normas administrativas e operacionais. (...)
2) Nas polícias modernas as funções de policiamento uniformizado e investigação devem boa parte de seus êxitos à interpenetração dessas funções, desde a fase de diagnóstico, planejamento e até a execução das ações.
3) A responsabilidade por uma área de ação policial é difícil de compartilhar. Em matéria organizacional é incompreensível dividir entre dois chefes a responsabilidade para planejar e executar ações de uma mesma atividade para conseguir resultados significativos. (...).
4) Estruturas diferentes que atuam no mesmo espaço sobre o mesmo problema tendem a constante rivalidade e atrito. (...).
5) (...)
6) A coordenação das polícias através da designação de uma pessoa de fora dos quadros policiais traz mais complexidade para o problema. Secretários da Segurança, que são chefes da polícia estadual sem serem policiais, terão dificuldade para compreender a complexidade do trabalho policial, o que dificulta a tomada de decisões críticas para promover a eficiência e eficácia do aparato policial, além de trazer problemas de aceitação de um chefe estranho ao meio policial.
7) O duplo aparato policial demanda dispêndios extraordinários com investimentos e custeios duplicados com instalações, equipamentos (...) estruturas administrativas e operacionais, o que compromete o limitado orçamento da segurança e até as possibilidades de pagamento de salários mais dignos”.

Silva Filho (op. cit.), ainda expressa alguns dos motivos pelos quais é mantida essa estrutura “bipartida e disfuncional de polícia no Brasil”:
“1) As polícias civil e militar, na maioria das vezes são comandadas por policiais que passaram a maior parte da carreira distanciados do fundamental policiamento territorial e, por isso, não conhecem intimamente o fundamento preventivo do serviço policial, que demanda a integração das atividades do policiamento uniformizado e da investigação. Esses chefes policiais acabam passando o conceito equivocado de organização policial às autoridades e à opinião pública. Lobistas das polícias, freqüentam o Congresso Nacional à margem dos governos estaduais e costumam ser da mesma estirpe da maioria dos chefes policiais, obcecados na manutenção do status quo, mas sem vivência do policiamento de base.
2) O governo federal, os governos estaduais, assim como os deputados e senadores, geralmente não têm idéia clara de como deveria ser um modelo funcional de polícia, nem de como isso seria importante para maior eficácia no controle da criminalidade. (...).
3) Freqüentemente são apontados modelos estrangeiros onde existe polícia militarizada para justificar a existência da polícia militarizada (como França, Portugal, Itália, Espanha, Argentina, Chile, Peru, Argentina, Colômbia). (...)
4) Outro argumento é o de que sem a disciplina militar, a polícia - no caso a militar - perderia sua capacidade de responder prontamente as ordens de seus superiores, seria mais vulnerável à corrupção e afrouxaria sua dedicação no atendimento das necessidades da população, além de favorecer a sindicalização, os movimentos contestatórios e greves de policiais. Esse argumento pode ser facilmente contestado: polícias altamente eficientes como as de Londres ou Nova York não são militarizadas, como não era militarizada a Guarda Civil de São Paulo, uma das melhores organizações policiais que já existiram no País. (...).
5) Uma restrição apontada é o gigantismo da polícia única com um poder ameaçador sobre a sociedade. (...). O argumento é falacioso pois, a rigor, a polícia opera de forma departamentalizada, quase como organizações autônomas nas cidades das regiões metropolitanas e no interior. O argumento de mútua vigilância é absurdo, pois as organizações públicas devem cumprir a lei e ser fiscalizadas por seus próprios responsáveis, pelo ministério público e pela própria população”.

Outro fato que tende a justificar a reforma da polícia e pesa até nos discursos favoráveis a unificação, assim como aos argumentos de polícia de ciclo completo é apontado por Rondon Filho (op. cit., p. 114), sobre a atuação das polícias estaduais (Civil e Militar) seja intencionalmente ou devido a natureza do serviço, elas acabam “invadindo” a área de atuação uma da outra, sendo constatado por exemplo que o serviço de inteligência da Polícia Militar, o qual é responsável pela investigação de responsabilidade da polícia judiciária militar (crimes militares) e fiscalização da disciplina interna, realiza costumeiramente serviços de polícia judiciária civil entrando numa esfera que não é de sua competência.
No mesmo rumo, ainda de acordo com Rondon Filho (op. cit., p. 114), a Polícia Civil, que deve e necessita executar seu trabalho veladamente e concentrar seus esforços na elucidação dos crimes ocorridos com objetivo de descobrir a autoria e materialidade do fato, de praxe, executa também em algumas ocasiões o policiamento ostensivo, invertendo, semelhante a Polícia Militar, os valores e objetivos das instituições policiais. Como já frisado, percebe-se uma inversão de valores, intencional ou não, onde a Polícia Militar quer ser judiciária civil e a Polícia Civil quer ser ostensiva, o que resulta nenhuma das duas polícias realizando suas funções a contento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final dessas colocações e análises observam-se alguns pontos relevantes a serem destacados para a segurança pública, sendo resumidos em justificativas e sugestões para a indispensável reestruturação. Alguns desses pontos, antes mesmo de serem efetivados em mudanças no texto constitucional e demais leis estruturantes, podem servir de parâmetros a gestores públicos no sentido de consolidarem ações de forma a proporcionar ganhos substanciais de produção dos serviços prestados, isto é, tentar desde já serem eficaz e eficiente mesmo com as atuais estruturas.
Diante da temática apresentada, é preciso lembrar que as instituições policiais ora citadas não têm somente pontos negativos em destaque, mesmo sendo eles mais latentes, existe também os pontos positivos que as enaltecem e garantem sua perpetuação enquanto instituição responsável pela regulação social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição Federal. Brasília: Câmara dos Deputados e Senado Federal, 1988.

Bicudo, Hélio. A unificação das polícias no Brasil. Estudos Avançados, São Paulo, vol.14, n. 40, p. 91-106, set.-dez. 2000.

RONDON FILHO, Edson Benedito. Unificação das Polícias Civis e Militares: ciclo completo de polícia. Monografia. Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá, 2003.

SILVA FILHO, José Vicente da. Fundamentos para a reforma da polícia. Disponível em Acesso em: 20 jul. 2007.

SILVA, Jorge da. Controle da Criminalidade e Segurança Pública na nova ordem constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

SOARES, Luiz Eduardo. Reforma da Polícia e a Segurança Pública Municipal. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 65, maio 2003. Disponível em: . Acesso em: 10 jan. 2007.


*Soldado da PMRR; Bel em Seg. Pública pelo então ISSeC-RR, atual UERR; e Pós-Graduando do Curso de Especialização em Segurança Pública e Cidadania da Universidade Federal de Roraima.

Nenhum comentário: