terça-feira, 4 de março de 2008

Filtragem Racial na Prática Policial

Entre os policiais, entende-se que é politicamente correto dizer que não existe a filtragem racial, pois em contrário assumir-se-ia uma posição que negaria o pensamento ainda hegemônico de que a cor da pele não é obstáculo às conquistas sociais, ou seja, que no Brasil há uma verdadeira democracia racial. Nesse sentido, pode-se identificar o que Paul Amar (2005, p.239) denomina de “cegueira racial”, quando as instituições não reconhecem a raça como componente fundamental da suspeição, “recusando-se a ver através da lente da análise racial e ignorando as hierarquias raciais”. Assim, é comum não haver, por parte das instituições, qualquer questionamento sobre procedimentos que, tidos neutros, ou seja, não tendenciosos, mascarem essa filtragem. Se hoje, essa filtragem é mascarada; no passado, era aberta.

Holloway (1997, p.63) afirma que, após 1808, as instituições criadas para assumir a função polícia foram empregadas muito mais na apreensão de escravos fugitivos do que em outras categorias. Para esse autor, as instituições policiais foram criadas para aumentar o potencial de enfrentamento das elites, pois as camadas inferiores, oriundas de um sistema escravocrata, com mínimas chances de desenvolvimento, exerciam pressões (Hollway, 1997, p.31).

Arrematando seu raciocínio, Holloway (1997, p.264) aduz que, além de haver a continuidade da hierarquia social com a preservação de todos os valores inerentes ao status quo, as instituições policiais foram criadas para atuar nos “efeitos sociais do colapso da velha ordem”, em que não foram desenvolvidas estruturas para proporcionar a um contingente cada vez maior de homens livres, as mínimas condições para que se pudesse viver com dignidade. O desenvolvimento desse aparato de controle “possibilitou à elite política e econômica conservar a vantagem na guerra social, controlar os escravos e seus sucessores funcionais e manter a ralé recuada (grifos nossos). O Brasil convive com isso até hoje”. Para Mariano (2004, p.20), era contra essa “ralé” que se dirigiam as atenções do aparato policial recém-estruturado, acrescentando que “não é por acaso que os órgãos de segurança pública no Brasil têm tradição racista (grifos nossos)”.

Segundo Amar (2005), o termo filtragem racial (racial profiling) é empregado hoje nos Estados Unidos para descrever a conduta policial de parar veículos em rodovias para serem revistados, utilizando-se de critérios raciais. Como não há dados em relação ao número de condutores por cor da pele que trafegam nas principais rodovias da Região Metropolitana do Recife, a fim de aferir se há sobre-representação de negros condutores na seleção de veículos parados, Barros (2006, p.100), aplicando questionários a 469 policiais militares da Polícia Militar de Pernambuco, procurou identificar se havia filtragem racial na ação policial de parar veículos para vistorias. Os dados referentes a essa categoria de ação policial podem ser vistos nas tabelas 01, 02 e 03.


Tabela 01: cor do suspeito x tipo de carro (Profissionais)

O mais suspeito Freq. %

Independe 259 56,7
Negro dirigindo carro de luxo 99 21,7
Outro 31 6,8
Branco dirigindo carro popular 18 3,9
Negro dirigindo carro popular 17 3,7
Negro dirigindo carro popular velho 12 2,6
Branco dirigindo carro de luxo 12 2,6
Branco dirigindo carro popular velho 9 2,0
Total 457 100,0

Observação: 12 não informado
Fonte: Barros (2006, p.100)

Visualizando-se a tabela 01, verifica-se que, com exceção da opção independe, os policiais consideram que a situação mais suspeita entre pessoas negras e brancas, quando na condução de um veículo, é a negra dirigindo um carro de luxo. Nesse aspecto, não havendo qualquer referência a outras variáveis, pode-se deduzir que a cor constitui filtro de suspeição.

Tabela 02: prioridade 01 para parar um veículo (profissionais)

Situação Freqüência

Independe 145
Carro de luxo dirigido por negro 77
Carro popular dirigido por negro 33
Carro popular dirigido por mestiço 28
Outro 21
Carro de luxo dirigido por branco 19
Carro popular dirigido por branco 17
Carro de luxo dirigido por mestiço 11

Fonte: Barros (2006, p.100)

Quando questionados sobre a prioridade 01 para parar um veículo, os dados da tabela 02 sinalizam que os policiais tendem a priorizar, com exceção da opção independe, primeiro os negros, depois os mestiços e, por último, os brancos.



Tabela 03: cor do menos suspeito x tipo de carro ( Profissionais)

O menos suspeito Freq. %

Independe 239 53,1
Branco dirigindo carro de luxo 78 17,3
Branco dirigindo carro popular velho 30 6,7
Outro 30 6,7
Negro dirigindo carro de luxo 24 5,3
Branco dirigindo carro popular 21 4,7
Negro dirigindo carro popular velho 20 4,4
Negro dirigindo carro popular 08 1,8
Total 450 100,0

Observação: 19 não informados
Fonte: Barros (2006, p.100)

Quando questionados sobre o menos suspeito versus o tipo de carro, conforme a tabela 03, não resta dúvida que, entre os policiais, o menos suspeito é uma pessoa branca dirigindo um carro de luxo. Dessa forma, conforme os dados revelados nas tabelas acima, a filtragem racial é uma realidade. Assim, para que se tenha uma polícia democrática, antes de tudo, é preciso reconhecer essa realidade, para depois desenvolver mecanismos institucionais para erradicá-la.




Referências

AMAR, P. Táticas e termos da luta contra o racismo institucional nos setores de polícia e de segurança. In: RAMOS, S. e MUSUMECI, L. Elemento suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 229-281.

BARROS, G. da S. Racismo Institucional: a cor da pele como principal fator de suspeição.Recife, 2006. 133 folhas. Dissertação (Mestrado em Ciência Política)- Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Universidade Federal de Pernambuco.

HOLLOWAY, T. H. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. Tradução: Francisco de Castro Azevedo. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997. Tradução de : Policing Rio de Janeiro: repression and resistance in a 19 th-century city.

MARIANO, B. D. Por um novo modelo de polícia no Brasil: a inclusão dos municípios no sistema de segurança pública. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.

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