terça-feira, 4 de março de 2008

O rito e a práxis policial

A relação entre o rito “sabe com quem está falando?” e a práxis policial

Geová da Silva Barros

Não é possível ter uma polícia democrática, enquanto os policiais forem vítimas do uso do rito “sabe com quem está falando?”. Roberto Damatta (1997), ao interpretá-lo, aduz que esse rito revela a existência dos mais “violentos preconceitos”, havendo ênfase na hierarquia social e na relação de intimidade com os detentores do poder como parâmetros que se sobrepõem ao conceito de que todos são iguais perante a lei. Para Damatta (1997,p.185), o sistema social brasileiro está estruturado de forma a manter uma hierarquia social, havendo em si um antagonismo entre a regra e a prática. Salienta ainda que

“é como se alguns fatores sempre estivessem presentes em nossa sociedade: primeiro, a necessidade de divorciar a regra da prática; segundo, a descoberta de que existem duas concepções da realidade nacional: uma delas é a visão do mundo como um foco da integração e cordialidade, a outra é a visão do mundo como feito de categorias exclusivas, colocadas numa escala de respeitos e deferências”(Damatta, 1997,p.186).

Segundo Damatta (1997, p. 195), o rito enseja no “estabelecimento de elos personalizados em atividades basicamente impessoais”. Assim, se um policial que trabalha no trânsito, ao comunicar a um indivíduo qualquer que o mesmo acaba de infringir as regras previstas no Código e por isso será multado, pois todo e qualquer cidadão deve cumprir essas regras, numa atitude totalmente impessoal, quando ouve do interlocutor o rito “sabe com quem está falando?” e o seu complemento “eu sou o desembargador Fulano de Tal ou o deputado Beltrano”, passa a refletir nas conseqüências advindas caso persista na impessoalidade de sua ação.

Os termos cidadão brasileiro e indivíduo refletem “papéis sociais universalizantes”, onde todos são iguais em direitos e deveres. Assim, quando um policial, no exercício de suas funções, demonstra um tratamento impessoal no desenvolvimento de uma ocorrência, indica que o interlocutor está sendo visto de uma forma universal. Por sua vez, ao dizer o rito “você sabe com quem está falando?”, o interlocutor faz com que o tratamento passe do campo da universalidade para o da pessoalidade. Na linguagem de Damatta (1997, p. 220), verifica-se que

“no Brasil, tudo indica que a expressão permite passar de um estado a outro: do anonimato ( que revela a igualdade e o individualismo) a uma posição bem definida e conhecida ( que expressa a hierarquia e a pessoalização ); de uma situação ambígua e, em princípio, igualitária, a uma situação hierarquizada, onde uma pessoa deve ter precedência sobre a outra. Em outras palavras, o “sabe com quem está falando?” permite estabelecer a pessoa onde antes só havia um indivíduo”.

Existem duas questões que devem ser consideradas no uso desse rito. A primeira pode ser entendida como a categorização da cidadania: cidadãos de primeira categoria, de segunda, de terceira, etc. Os de primeira categoria são os interlocutores do rito, homens e mulheres que se colocam acima das leis, normalmente são indivíduos que possuem cargos públicos proeminentes ou gravitam em torno do poder. Normalmente, não se diz o rito quando se está certo. Assim, os policiais são intimidados e pressionados a não cumprirem a lei, justamente por aqueles que mais deveriam obedecê-la. Além disso, esse rito contribui para uma prática policial mais discriminatória. Barros (2006, p.94), ao aplicar questionários para 469 policiais militares da Polícia Militar de Pernambuco, identificou que 77, 3% já haviam sofrido a injunção do rito, enquanto 13,5% afirmaram não ter sofrido essa injunção, tendo 9,3% respondido que não lembravam. Nessa perspectiva, os dados indicam que o uso desse rito é muito mais usual do que se imaginava.

Por outro lado, Barros (2006, p.95) também procurou verificar se os policiais, em algum momento da carreira, já haviam priorizado abordar negros ou pardos para depois abordar os brancos. Conforme os resultados, 45% responderam que, em eventos diversos, nos quais negros e brancos freqüentavam o mesmo espaço, já priorizaram a bordar os negros e pardos.

Procurando verificar se havia uma relação entre “já priorizou abordar negros ou pardos” e “sabe com quem está falando?”, Barros (2006, p. 95) fez o cruzamento entre os dados, a fim de aferir o grau de dependência. Conforme os dados levantados, dos 205 policiais que já abordaram em virtude da cor, 164, representando 80%, já passaram pela experiência do rito “sabe com quem está falando?”. Quando se considera os 247 policiais que afirmam não ter abordado em virtude da cor, 185, representando 74,8%, já passaram pela experiência do rito. Assim, verifica-se uma diferença em favor do sim/sim de 5%. Aplicando o teste Qui-Quadrado de Pearson, para verificar o nível de associação entre as duas variáveis ( sabe com quem está falando? e Já priorizou?) a partir da hipótese nula de que as variáveis envolvidas são independentes, Barros (2006, p. 95) identificou que há uma rejeição à hipótese nula a um nível de significância de 0,022 , ou seja, a variável “já priorizou?” guarda uma certa dependência do rito “sabe com quem está falando?”. Nessa perspectiva, os dados sinalizam que o rito contribui para aumentar a discriminação racial.

Duas questões interessantes: a primeira é que 228 policiais afirmaram que o interlocutor era branco, contra 68 pardos e 6 negros; a segunda, revela que os interlocutores do rito são geralmente advogados, políticos e seus assessores, juízes e promotores.De acordo com os dados apresentados neste trabalho, preliminarmente pode-se aduzir que os policiais, ao sofrerem a injunção do rito, entendem que a estrutura de poder do Estado ou da instituição não lhe fornece condições de aplicar a lei àqueles que se julgam acima do ordenamento legal do país. Estando enfraquecido nessa relação de poder, resolvem não mais abordar as pessoas que possuem o perfil do interlocutor do rito, focando suas atenções aos que possuem o perfil oposto. É lógico que essa hipótese deve ser aprofundada e que outros fatores aqui não cogitados também contribuem para o racismo institucional. Ademais, ressalto que enquanto houver diferenças de cidadania e o não fortalecimento dos policiais na condição de servidores da sociedade, não há de se ter uma práxis policial democrática. Por outro lado, nada justifica a discriminação racial.




Referências

BARROS, G. da S. Racismo Institucional: a cor da pele como principal fator de suspeição.Recife, 2006. 133 folhas. Dissertação (Mestrado em Ciência Política)- Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Universidade Federal de Pernambuco.

DAMATTA, R.Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro.6ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

Um comentário:

José Mário disse...

Coerente e realista a análise aqui postada pelo nobre colega Geová, pessoa bastante preparada e correta. Lamento apenas ter se limitado ao universo das praças, melhor se estendesse aos oficiais e mais propriamente, aos que detém o cargo de comando. Sei, por experiência, que a maioria dos praças não agem com isenção ou determinação por não confiarem em seus comandantes, acreditam que os mesmos ao serem pressionados, irão entregar as cabeças dos seus subordinados com aquela velha desculpa “faltou-lhe bom senso”. Mas acredito também que resolveríamos pelo menos 70% desses problemas dando autonomia aos Cmtes, a partir do Cmt Geral, onde este poderia realmente comandar sua instituição e adotar as providências necessárias sem temer ingerências políticas-sociais que pusesse em perigo sem cargo. estamos perto e ao mesmo tempo longe de alcançar doutrina desse porte, tais como o MMPP e outras instituições. forte abraço!